Dias atrás publiquei nesta ConJur um texto referente ao conflito federativo entre Estados e União acerca da tributação da transmissão do patrimônio imobiliário em caso de doações e heranças, na linha de recentes decisões do STF que afastavam a tributação federal, mantendo apenas a incidência estadual.
Após a publicação, colegas comentaram que o Supremo Tribunal Federal estaria errado — e, por conseguinte, eu também — pois uma coisa era o fato gerador da transmissão da propriedade imobiliária, tributável pelos estados através do ITCMD, e outra coisa era a valorização daquele imóvel, fato que ensejaria a incidência de IR sobre ganhos de capital a ser cobrada pela União. Logo, conforme essa opinião, os dois impostos poderiam ser cobrados, pois decorreriam de distintas hipóteses de incidência.
Escutei, analisei e mantenho minha posição, alinhada com o STF neste específico caso. A tributação da transmissão do patrimônio imobiliário por herança ou doação é exclusivamente dos Estados, através do ITCMD, afastando a incidência do IR sobre ganhos de capital tal qual calculada. No atual formato legislativo, há invasão da competência tributária dos Estados pela União.
A explicação é simples: a atual estrutura normativa da tributação pelo IR dos ganhos de capital alcança o passado, o que acaba por se sobrepor à tributação pelo ITCMD relativo à transmissão do patrimônio.
A despeito de constar no inciso XVI, artigo 6º, Lei nº 7.713/88 que são isentos do IR os “bens adquiridos por doação ou herança”, a União tributa através do IR o ganho de capital daí decorrente. Para apurar a base de cálculo, adota-se o seguinte procedimento: identifica-se o valor registrado na declaração de IR do doador/de cujus e daí surgem duas possibilidades: ou 1ª) apurar e pagar imediatamente 15% de IR sobre o ganho de capital, atualizando o valor originário do bem pelo valor de mercado (Lei nº 9.532/97, artigo 23, §1º); ou 2) adiar a apuração do eventual ganho de capital para o momento futuro em que o donatário/herdeiro vier a realizar a alienação daquele bem (Lei nº 9.532/97, artigo 23, §3º). É como se fosse permitido ao contribuinte fazer uma aposta, pois não se sabe de antemão em qual situação o valor será maior: ou no momento em que recebe o bem, ou em momento futuro quando vier a aliená-lo.
Constata-se que a diferença entre as duas possibilidades é o valor do bem no momento final do cálculo, isto é, o aspecto temporal influencia na apuração da base de cálculo. Nas duas situações a base inicial do cálculo é o valor original do bem. A diferença é seu valor na data final de apuração. Na 1ª opção, a apuração ocorre quando o bem ingressa no patrimônio do herdeiro/donatário, apurando-se desde logo o montante de ganho de capital a ser tributado pelo IR pela alíquota de 15%; na 2ª opção, a apuração é diferida para o momento futuro em que o bem herdado/recebido vier a ser alienado, quando então será apurado o ganho de capital, sob a alíquota que então vigorar. Nas duas opções, inicia-se o cálculo pelo valor original do bem.
É neste ponto que se encontra o problema, pois o valor original do bem é a base de cálculo do ITCMD, e sua utilização para tributar ganhos de capital pelo IR ocasiona uma invasão de competência dos Estados pela União. O dies a quo da apuração desse cálculo remete a um valor que é integralmente referido ao doador/de cujus, para o qual o donatário/herdeiro em nada contribuiu, mas sobre o qual está sendo obrigado a pagar IR sobre ganhos de capital decorrente do patrimônio recebido por herança/doação (âmbito de incidência do ITCMD).
Quando a norma se utiliza desse valor remoto para apurar o IR sobre ganhos de capital, invade a competência estadual para tributar heranças e doações. Se a apuração ocorrerá no momento da incorporação do bem ao patrimônio do herdeiro/donatário ou quando este vier a aliená-lo, é irrelevante na presente análise; o aspecto importante a ser destacado diz respeito ao âmbito de apuração inicial, que se confunde com o que havia de patrimônio do doador/de cujus.
A fórmula correta para apuração de eventual ganho de capital a ser tributado pelo IR seria a de utilizar o valor do bem quando ingressou no patrimônio do herdeiro/donatário. Em linguagem popular: a transmissão do bem imobiliário por herança ou doação zeraria eventual ganho de capital ocorrido no passado, acarretando o ingresso desse bem no patrimônio de quem o recebe pelo valor de mercado, tributado pelo ITCMD. Daí para a frente, tendo sido adotado esse novo valor originário, é que se apuraria eventual ganho de capital na hipótese de alienação desse patrimônio imobiliário herdado/doado.
Por fim, observa-se ser sempre necessário ter cautela na análise jurídica, circunscrevendo os atos e fatos a serem analisados. É inegável que são duas incidências distintas: ITCMD e IR sobre ganhos de capital. Porém os detalhes fazem a diferença, conforme análise da atual legislação federal aplicável, acarretando em concreto a superposição das duas incidências.
A atual fórmula jurídica para a apuração do IR sobre ganhos de capital decorrentes de transmissão do patrimônio imobiliário por doações ou heranças infringe a competência tributária federativa (artigo 153, III c/c artigo 155, I, CF), o que acarreta a ilegalidade da incidência federal, mantendo apenas a estadual.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Fonte: ConJur