Nos últimos anos, sobretudo em virtude da pandemia de Covid-19 e com uma busca mais intensa por mecanismos de planejamento sucessório, tem-se percebido uma utilização crescente do que se passou a denominar no Brasil de “holding familiar”. Temos tratado do assunto não só nos nossos escritos, mas também em palestras, aulas e exposições.
Como explica José Maria Leoni Lopes de Oliveira, “holding é a pessoa jurídica, que pode assumir diversas formas societárias, que tem por finalidade participar de outras sociedades, ser titular de bens móveis e imóveis, ou investimentos financeiros”. Ainda segundo o jurista, “apesar de não haver no Direito pátrio um conceito de holding, a sua noção, segundo a doutrina pátria, pode ser retirada do § 3º do art. 2º da Lei das Sociedades Anônimas, ao estabelecer que ‘a companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais’. Embora o texto legal não se refira à holding, traz sua principal finalidade: a companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades” (Direito civil: sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 556). Também no âmbito da doutrina, Rodrigo Toscano de Brito, tratando mais especificamente do que se convencionou chamar de “holding familiar”, explica que o verbo “to hold” significa segurar, manter, controlar, guardar, sendo a “holding familiar” uma sociedade ou pessoa jurídica que detém participação societária em outra pessoa jurídica com a finalidade de controlar “o patrimônio da família para fins de organização patrimonial, diminuição de custo tributário e planejamento sucessório”. Ainda segundo o autor, a constituição pode se dar por meio de uma sociedade simples ou empresária, o que é definido pelos próprios membros da família (Planejamento sucessório por meio de holdings: limites e suas principais funções. In: Família e sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 672).
Dentre as suas funções, vantagens e utilidades, tem-se apontado uma maior possibilidade de conter os conflitos entre os membros da família, sem afetar a sociedade controlada, que continua produzindo riquezas, mantendo os seus funcionários e, supostamente, pagando os tributos. E, de fato, muitos advogados têm oferecido, sobretudo na internet e pelas redes sociais, serviços para montagem dessas estruturas, bem como cursos de formação de outros profissionais para a prestação de serviços jurídicos relativos às “holdings familiares”.
Todavia, como temos advertido, existem sérios problemas de invalidade que acometem essas constituições negociais, sobretudo no caso do modelo que busca o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família e sua destinação para essas pessoas jurídicas. Destacamos que todas as razões de invalidade dizem respeito à violação de normas cogentes ou de ordem pública e que, por isso, são causas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades. Procuraremos analisar essas causas de nulidade, bem como suas consequências práticas, em três breves artigos, escritos em coautoria e publicados neste canal.
Pois bem, o primeiro problema – e talvez o mais grave de todos – é que essas constituições negociais representam um negócio jurídico indireto, tema tratado com maestria pelo clássico Tullio Ascarelli. Segundo o jurista, tem-se negócio jurídico indireto “quando as partes recorrem, no caso concreto, a um negócio determinado para alcançar, consciente e consensualmente, por seu intermédio, finalidades diversas das que, em princípio, lhe são típicas” (Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 94). Da própria definição de negócio jurídico indireto verifica-se que ele pode ou não ser ilícito, ficando tal qualificação a depender do fim visado. Em sendo esse fim ilícito, estar-se-á diante de negócio jurídico indireto em fraude à lei, que, por disposição expressa de lei, é nulo (art. 166, VI, do Código Civil). Exatamente nesse sentido, vejamos as considerações do segundo coautor deste texto:
“Pode-se reconhecer que de modo geral a doutrina caracteriza a fraude à lei a partir da ilicitude do resultado alcançado, é dizer, por meios lícitos é alcançado ou são alcançados resultados ilícitos.
Essa noção coloca em questão o axioma do direito privado segundo o qual o agente é livre para praticar todos os atos que não lhe sejam proibidos. É evidente que se poderá dizer que o agere in fraudem legis consiste justamente em se afrontar a proibição legal da prática de certo ato, o problema é que sua verificação não se dá, como em regra, ex ante, mas, necessariamente, ex post” (Invalidade do negócio jurídico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 157).
Ora, nos casos das “holdings familiares” que visam ao total esvaziamento patrimonial da família há claro desrespeito às normas cogentes ou de ordem pública alusivas à sucessão legítima, tratadas pelo Código Civil a partir do seu art. 1.784. E nesse desrespeito, pelo resultado alcançado pelas partes, sob a justificativa de exercício da autonomia privada, é que está presente a fraude à lei imperativa.
Como se sabe, a autonomia privada encontra limites nessas normas e preceitos, o que acabou sendo expressamente positivado pela Lei da Liberdade Econômica, nos termos do seu art. 3º, inc. VIII, segundo o qual, entre os direitos de liberdade econômica, há “a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”. Como se vê, a locução final destacada impõe a observância das normas cogentes, afastando-se a viabilidade jurídica de todo e qualquer negócio jurídico que se qualifique como instrumento de fraude à lei, por ser ato ilícito que gera a nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos do citado art. 166, inc. VI, do Código Civil.
O segundo problema jurídico que diz respeito à constituição das “holdings familiares” está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167). Geralmente, a constituição dessas pessoas jurídicas envolve a integralização de capital que não traduz a realidade – o que, aliás, é muito comum em nosso País -, caracterizando a simulação relativa objetiva prevista no § 1º, inc. II, do artigo citado, uma vez que o negócio jurídico constitutivo contém declarações e cláusulas que não são verdadeiras.
É interessante notar que, enquanto nas sociedades empresariais verdadeiramente operacionais não é raro que os sócios pratiquem fraude consistente em integralizar bens declarando que eles possuem valores mais elevados do que na realidade têm, nas chamadas “holdings familiares” muitas vezes ocorre o contrário, pois integralizam-se por valores módicos bens que na realidade são valiosíssimos. Essa manobra serve, por exemplo, para facilitar as doações de cotas ou de ações para certos membros da família, em detrimento de outros.
A propósito dessa questão, há o debate relativo à possibilidade de uma parte alegar a presença da simulação frente a outra, o que constantemente se aplica às “holdings”, uma vez que é comum o membro da família que participou da constituição da pessoa jurídica pretender o reconhecimento da sua invalidade, por vários motivos, sobretudo porque percebe posteriormente que foi prejudicado pelo esvaziamento patrimonial engendrado. A propiciar tal alegação, o Enunciado n. 294, aprovado na IV Jornada de Direito Civil – evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006 -, segundo o qual, “sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra”.
Ficou, assim, superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. A regra não mais tem incidência, pois a simulação, em qualquer modalidade, passou a gerar a nulidade absoluta do negócio jurídico – e não mais a nulidade relativa, como estava na codificação privada anterior -, sendo questão de ordem pública, a prevalecer inclusive sobre eventual alegação de um comportamento contraditório da parte que alega a simulação, mesmo tendo participado do ato. Assim, a simulação vence a incidência da máxima nemo venire contra factum proprium non potest, um dos conceitos parcelares da boa-fé objetiva.
Acrescente-se que, em havendo nulidade absoluta, aplica-se o art. 168 do Código Civil de 2002, que possibilita o ajuizamento da ação declaratória de nulidade absoluta por qualquer interessado ou, eventualmente, pelo Ministério Público, sem prejuízo de que o juiz reconheça as invalidades de ofício. Como “qualquer interessado” inclua-se quem praticou o ato, justamente pela necessidade de prevalência e de respeito às normas de ordem pública, cuja violação, insistimos, é causa de nulidade absoluta do ato.
Tal conclusão atinge não só as pessoas naturais como também as pessoas jurídicas integrantes de contratos empresariais e paritários, como se retira do antes transcrito art. 3º, inc. VIII, da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), pelo termo final antes destacado. Ora, se as normas de ordem pública devem ser observadas mesmo em contratos simétricos entre grandes empresas, com mais razão no caso em que nulidades e ilícitos civis trazem claros prejuízos a uma pessoa natural em relações familiares e sucessórias que são muitas vezes assimétricas.
Anote-se que a norma destacada teve uma mudança substancial frente ao texto da sua originária Medida Provisória n. 881, que preceituava, nesse mesmo comando, que a parte de um negócio jurídico empresarial não poderia alegar violação à norma de ordem pública caso participasse do ato. Era a previsão do art. 3º, inc. VIII, da MP: “São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição. (…). VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato”.
No texto anterior, portanto, dava-se primazia à máxima que veda o comportamento contraditório (nemo venire contra factum proprium non potest), fundada na boa-fé objetiva, o que acabou sendo afastado no texto final da norma jurídica ora em vigor. Pela lei hoje vigente, não há essa “escolha prévia” do legislador, sendo necessário sempre observar os preceitos de ordem pública, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
Exatamente no sentido de se admitir a alegação de invalidade por simulação pelo próprio negociante, recente julgado do Superior Tribunal de Justiça que cita a posição doutrinária do primeiro coautor deste texto, segundo o qual “com o advento do CC/02 ficou superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. O art. 167 do CC/02 alçou a simulação como causa de nulidade do negócio jurídico. Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra (Enunciado nº 294/CJF da IV Jornada de Direito Civil). Precedentes e Doutrina. (…). O negócio jurídico simulado é nulo e consequentemente ineficaz, ressalvado o que nele se dissimulou (art. 167, 2ª parte, do CC/02)” (STJ, REsp 1.501.640/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/11/2018, REPDJe 07/12/2018, DJe 06/12/2018). Outros arestos da mesma Terceira Turma do STJ, e mesma relatoria, têm seguido esse entendimento.
Na mesma esteira, são encontrados acórdãos estaduais. Concluindo desse modo, decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná: “Não há óbice à alegação da existência de simulação pela própria parte contratante, por se tratar o negócio jurídico simulado nulo de pleno direito. Enunciado nº 294 das Jornadas de Direito Civil” (TJPR, Embargos de Declaração Cível n. 1737359-0/01, São João do Triunfo, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Rodrigo Fernandes Lima Dalledone, julgado em 18/04/2018, DJPR 14/05/2018, p. 119). Do Tribunal Paulista: “Simulação que inquina os negócios jurídicos de nulidade, impassíveis de convalidação pelo decurso do tempo. Viabilidade de o próprio simulador suscitar a ocorrência do vício social. Inteligência do Enunciado nº 294 do CJF” (TJSP, Apelação n. 1048680-68.2015.8.26.0100, Acórdão n. 11470640, São Paulo; Trigésima Primeira Câmara Extraordinária de Direito Privado, Relª Desembargadora Rosangela Telles, julgado em 21/05/2018, DJESP 24/05/2018, p. 1918). Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, apenas para ilustrar e sem prejuízo de muitas outras ementas com mesma conclusão:
“Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra. Enunciado nº 294 da IV Jornada de Direito Civil. Regra que proibia que a parte que deu causa à simulação ingressasse em juízo pedindo a nulidade da avença, constante do art. 104 do CC de 1916, que não foi reproduzida no CC de 2002” (TJRS, Apelação n. 0072393-88.2015.8.21.7000, Cachoeirinha, Vigésima Câmara Cível, Rel. Desembargador Dilso Domingos Pereira, julgado em 25/03/2015, DJERS 01/04/2015).
Destacamos, por sua enorme relevância para esta temática, que o próprio Superior Tribunal de Justiça tem importante precedente, do ano de 2014, a respeito de simulação presente na “holding familiar”, em hipótese fática em que se discutiu a legitimidade do nu-proprietário de quotas sociais dessa pessoa jurídica para “pleitear a anulação de ato societário praticado por empresa pertencente ao grupo econômico, sob a alegação de ter sido vítima de simulação tendente ao esvaziamento do seu patrimônio pessoal”. Vejamos os seus exatos termos, que confirmam o que aqui se defende:
“As nulidades decorrentes de simulação podem ser suscitadas por qualquer interessado, assim entendido como aquele que mantenha frente ao responsável pelo ato nulo uma relação jurídica ou uma situação jurídica que venha a sofrer uma lesão ou ameaça de lesão em virtude do ato questionado. (…). Ainda que, como regra, a legitimidade para contestar operações internas da sociedade seja dos sócios, hão de ser excepcionadas situações nas quais terceiros estejam sendo diretamente afetados, exatamente como ocorre na espécie, em que a administração da sócia majoritária, uma holding familiar, é exercida por usufrutuário, fazendo com que os nu-proprietários das quotas tenham interesse jurídico e econômico em contestar a prática de atos que estejam modificando a substância da coisa dada em usufruto, no caso pela diluição da participação da própria holding familiar em empresa por ela controlada” (STJ, REsp 1.424.617/RJ, Terceira Turma, Relª Ministra Nancy Andrighi, DJE 16/06/2014).
A leitura do acórdão revela situação típica de transferência patrimonial de bens de pessoa natural para jurídica, com integralização de quotas em favor dos filhos e da esposa, privilegiando-os, o que é muito comum na prática. Consoante se retira do voto da Ministra Relatora, com grande repercussões, “havendo a prática de atos fora dos limites do contrato social, em desvio de finalidade ou para fins de confusão patrimonial, poderá surgir, inclusive, a desconsideração da personalidade jurídica do grupo, com risco de afetação do patrimônio dos sócios, dentre eles, a recorrente”.
Como se pode perceber, a fraude à lei diante do negócio jurídico indireto e a simulação já são motivos substanciais suficientes para se reconhecer a invalidade da constituição das “holdings familiares” que visam ao esvaziamento patrimonial total dos componentes da entidade familiar. Mas não é só. No próximo texto, traremos outros motivos relevantes de sua invalidação, especialmente a fraude à legítima – quota dos herdeiros necessários -, o desrespeito ao art. 426 do Código Civil e o citado desvio de finalidade, na leitura do atual art. 49-A, parágrafo único, da codificação privada.
Fonte: Migalhas